Quem nunca matou a fome com um pacote de biscoitos ou uma bebida doce de caixinha, que atire a primeira pedra. Os chamados alimentos ultraprocessados fazem parte do dia a dia da população e estão presentes em diversas lugares: das lancheiras das crianças, até os armários das casas de adultos e idosos. No entanto, esse tipo de refeição esconde perigos que não cabem na embalagem e incluem o desenvolvimento de cáries em criança, até obesidade e doenças mais graves, como câncer.
Um estudo publicado em novembro de 2022 pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade Estadual de São Paulo (Nupens-USP), a Fiocruz-RJ, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidade de Santiago, no Chile, revelou que os alimentos ultraprocessados são responsáveis por quase 57 mil mortes por ano no Brasil. O número, com base em dados de 2019, é maior até mesmo que a quantidade de homicídios no mesmo período: 45,5 mil.
Segundo o mesmo estudo, a maior parte das vítimas das consequências do consumo excessivo de alimentos ultraprocessados está na faixa dos 50 a 69 anos, do sexo masculino. A pesquisa ainda aponta que, se a população do país conseguisse reduzir em 10% a presença desse tipo de comida em suas dietas, quase 6 mil óbitos poderiam ser evitados – com 50%, o número sobe para 29 mil.
Mas afinal, o que são alimentos ultraprocessados?
“São alimentos nutricionalmente desequilibrados, com uma lista maior de ingredientes, ricos em sal, açúcar, gordura e aditivos, realçadores de sabor, edulcorantes, conservantes. Possuem alta palatabilidade, ou seja, são mais saborosos, e têm maior tempo de prateleira, maior validade”, explica a nutricionista Cris Perroni.
Alguns exemplos:
- Biscoitos recheados;
- Macarrão instantâneo;
- Salgadinhos de pacote;
- Refrigerantes;
- Sorvete;
- Chocolate ao leite.
De acordo com o IBGE, em 2019, quase 58% das crianças com menos de dois anos de idade já foram expostas com frequência a alimentos como biscoitos e bolo. Da faixa etária, 25% já comiam regularmente doces, e 16,9% mantinham sucos artificiais ou refrigerantes (11,5%) em sua dieta.
O que ultraprocessados podem causar:
- Diabetes tipo 2;
- Obesidade;
- Ansiedade;
- Infarto;
- AVC;
- Dislipidemia (nível anormal de gordura no sangue).
O endocrinologista Guilherme Renke destaca um estudo de KD Hall et al. que analisou duas dietas com o mesmo número de calorias. A diferença foi na qualidade alimentar: uma era composta por alimentos naturais, vegetais etc; a outra, por produtos ultraprocessados.
Mesmo em um cenário de conteúdo calórico idêntico, o grupo que comeu produtos menos saudáveis ganhou mais peso. Isso ocorre devido à ausência de fibras, inserção de aditivos químicos, entre outros fatores.
“(A adoção por ultraprocessados ocorre) porque é mais fácil, acessível e barata. Mas há uma questão cultural: uma pessoa que por vezes não está acostumada a ter condições de comprar um alimento ultraprocessado vê aquilo como uma coisa boa para a família dele. Poder fornecer aquele alimento é visto como uma coisa melhor, é um status social. E há uma pressão da indústria nesse consumo, lógico”, disse Guilherme.
Baixo custo explica grande adesão
Médicos e economistas observam que a alta nos preços de alimentos mais saudáveis, em tempos de crise financeira, tem grande influência no hábito alimentar do brasileiro. Um estudo da Unicef no Brasil publicado em 2021 revela que o preço e a praticidade são o segundo e terceiro principais motivos pelos quais as famílias fazem uso desse tipo de alimento; correspondendo a 24% e 17%, respectivamente.
O sabor ainda é a justificativa mais comum (46%), mas vale destacar que a pesquisa também revela que a proximidade de estabelecimentos que vendem refeições totalmente industrializadas é de impacto considerável para 64% das famílias ouvidas.
“Esses alimentos têm uma inflação menor do que os alimentos in natura e minimamente processados. É muito fácil chegar no supermercado, principalmente supermercado de periferia, e ver um macarrão instantâneo que tem como apelo de marketing informar que possui várias vitaminas”, explica a endocrinologista Maria Edna de Melo, do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, acrescentando:
“E jamais esquecer que muitas das famílias são conduzidas por mulheres que são as chefes de família, que acordam cedo e vão dormir tarde. Para quem tem uma vida mais tranquila é muito fácil pensar que é só não comer. Mas uma mulher que acorda às 4h e vai dormir às 23h, para ela lavar, fazer os vegetais, oferecer para a família, sempre existe uma recusa”.
Outro grande problema é o desconhecimento: para muitos, os rótulos dos produtos são de difícil interpretação. Ainda de acordo com a Unicef, quase metade das família ouvidas relatou que não se considera capaz de avaliar os alimentos conforme a lista de ingredientes exibida nas embalagens, e só 34% sequer a lê.
Com isso, alimentos como pão de forma, achocolatados, cereais, bebidas lácteas e queijo petit suisse (chamados popularmente de “iogurtes”, em potes pequenos, adocicados e de consistência mais cremosa) imperam na lista de produtos considerados saudáveis por parte da população.
Impacto nos cofres públicos
Coordenador do Índice de Preços ao Consumidor (IPC) e economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), André Braz explica que a adesão a ultraprocessados tem impactos além da saúde de cada indivíduo. A questão também pode se tornar um ponto de atenção para o governo brasileiro: problemas causados pela má alimentação implicam um maior gasto ao Sistema Único de Saúde (SUS).
“Os ultraprocessados também são culpados por alguns tipos de câncer, problemas de anemia, desnutrição. Quando o paciente de baixa renda procura o SUS, ele acaba sendo tratado de um problema que começou com uma alimentação inadequada. Isso volta num gasto maior para o governo”.
Segundo o economista, a adoção de políticas governamentais voltadas à boa alimentação seria o ponto de partida. Desta forma, seria possível reduzir – ainda que não imediatamente – o montante destinado ao tratamento de doenças causadas por ultraprocessados.
“Se você aumenta a probabilidade de as famílias terem uma alimentação saudável, você também diminui a chance de elas voltarem para o SUS e de isso ser outro problema para os cofres públicos. Se você tem que fazer um desembolso, em vez de fazer dois, faça um: invista no acesso a uma boa alimentação que, fatalmente, você vai gastar menos com saúde e vai sobrar mais dinheiro”, opina.
Mas e se a população não adotar as boas práticas? Para André, outra opção é uma taxação mais incisiva sobre produtos prejudiciais à saúde, desestimulando o consumo por meio do preço elevado.
“Acho que o governo pode tanto educar na escola quanto tributar mais. Aumentar o imposto sobre o que não é saudável é uma forma de compensar o SUS pelos gastos que vai ter no futuro para tratar a população que abusou desses itens. Tributar e informar no rótulo que aquele alimento não é saudável para diabéticos, hipertensos ou quem tem colesterol elevado. E também educar nas escolas. As crianças já aprendem nas aulas de biologia sobre alimentação, mas vale reforçar, até explicando por meio da própria merenda”, completou André Braz.
Risco entre crianças
A Unicef aponta também que o consumo de alimentos ultraprocessados cresceu entre crianças desde os seus primeiros anos de vida.
Ainda de acordo com uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) divulgada em 2021, a adesão ao consumo de alimentos ultraprocessados atinge 80% das crianças entre seis meses e dois anos.
Há, ainda um fator racial nessa faixa de idade: o mesmo levantamento denuncia que esse consumo prevalece mais em crianças pretas (85,7%) e pardas (81,8%), em comparação com crianças brancas (77,9%). O número total cresce na faixa etária que vai de dois a quatro anos: chega a 93%.
Como diferenciar?
Afinal, produtos ultraprocessados são todos aqueles industrializados? Não necessariamente. A nutricionista Cristiane Perroni dá dicas para entender todas as informações na tabela nutricional dos alimentos nas prateleiras do supermercado.
“A lista de ingredientes dos alimentos ultraprocessados é maior e contém produtos que não reconhecemos. Nos rótulos dos alimentos, a lista de ingredientes é descrita do alimento em maior quantidade para o de menor quantidade”, orienta.
Opções mais saudáveis
A nutricionista Cris Perroni também dá dicas para substituir os alimentos ultraprocessados na rotina.
- Iogurte natural;
- Frutas desidratadas;
- Snacks de grão de bico;
- Crepioca;
- Panquequinha de banana (ovo, aveia e banana).
Outras boas dicas são: mix de nozes, castanhas e frutas secas; chocolate acima de 70% cacau; geleia caseira de frutas; água de coco. No geral, o lema deve ser “descasque mais, desembale menos” – preparações caseiras são mais benéficas no geral.
Fonte: EuAtleta